PAU PRA
TODA OBRA
Chegou a São Paulo num pau-de-arara. Acredito que
isso não exista mais.
Trazia consigo mulher e três filhos pequenos.
De trem, desceu para Santos, e na primeira noite
amontoou-se com a família na estação ferroviária. Com uns poucos trocados
comprou pão e mortadela para alimentar o grupo. Amontoados dormiram.
Pela manhã saiu a procurar trabalho. Num armazém
dos arredores (que os havia muitos, à época), empregou-se para consertar sacos
de aniagem. Deram-lhe uma agulha longa, de fundo largo, barbante fino e uma
faca afiada – não havia tesoura.
Empregado, buscou lugar para morar, e um ensacador
do próprio armazém lhe indicou uma casa no morro quase em frente, onde poderia
locar um quarto.
Foi o que fez: entendeu-se com o português
proprietário da casa, que lhe mostrou um quarto servido de porta e janela, a
cozinha logo ao lado, um tanque comum, de concreto velho e limoso, e o mictório
também comum, que servia a mais duas famílias, na mesma edificação, além de um
cabra solteiro que ocupava o quarto da frente.
Vizinhança pacata.
Um dia, subindo pelo caminho, trombou com o vizinho
solteiro, Zózimo, e assustado com o encontrão, encolheu-se, dando passagem ao
outro. Ao observar seu enleio, Zózimo gostou, sentiu-se forte perante aquele
homenzinho mirrado e medroso. A partir daquele dia, procurava encontrá-lo em
situação de desvantagem, e o desacatava, a troco de nada.
De seu lado, Nezinho, nosso personagem, passou a
evitá-lo, fugindo de seu caminho, permanecendo dentro de casa, quando o sabia
nos arredores.
A voracidade de Zózimo em afrontar o medo de
Nezinho só fazia crescer.
Certo dia, recebendo a féria da semana, Nezinho
pediu ao capataz autorização para sair mais cedo.
Passou pela vendinha e comprou um pedaço de
bacalhau, petisco de que sua menina do meio gostava.
Subiu sossegado o morro – era cedo para Zózimo -, entrou
pelos fundos, chamou a filha e se encaminhou para a pequena varanda, sem
desfazer-se do embrulho.
Sentou-se
no terceiro degrau da escadinha e começou a desembrulhar o bacalhau.
A menina sentou-se no degrau acima e ficou olhando,
enquanto o pai sacava a faca de trabalho do bolso da camisa e cortava uma lasca
do peixe seco e salgado, que comeu sem careta. A lasca seguinte era dela. O sal
mais intenso fica na superfície do peixe, você sabe, o que deixaria mais suave
a parte interna do pedaço. Mas, um detalhe: o peixe acessível aos mais pobres
era aquela parte das beiradas, de pouco mais de meio centímetro de espessura,
que absorvia loucamente o sal.
Mas não fazia mal: pai e filha, juntos, em
silêncio, iam comendo as terríveis lasquinhas com enlevo.
Já lá estavam havia uns quinze minutos quando viram
chegar o Zózimo, balançando o corpo, distraído. Até que os avistou.
Sua cara se contraiu num sorriso escarninho;
caminhou direto para pai e filha.
- Que tu tem aí, Nezinho? Ah, já vejo! Me dá esse
bacalhau, Nezinho.
Pela primeira vez, talvez pela presença da filha, Nezinho
não teve aquela reação imediata de servilismo. Ainda que interiormente fervesse
de ira e medo, permaneceu calado, impassível.
- Dá esse bacalhau, Nezinho!
A voz, agora, além de imperiosa e impaciente, era
brutal.
A menina se encolheu, olhando para o pai, que
trazia agora o sobrolho carregado.
- Já não te falei pra me ...
Surpreendendo o próprio dono, a mão de Nezinho
moveu-se com rapidez, e interrompeu o gesto de Zózimo em direção ao peixe.
Foi um golpe só.
A faca entrou fundo e salgou a carne lacerada.