sábado, 3 de setembro de 2016

PAU PRA TODA OBRA


Chegou a São Paulo num pau-de-arara. Acredito que isso não exista mais.
Trazia consigo mulher e três filhos pequenos.

De trem, desceu para Santos, e na primeira noite amontoou-se com a família na estação ferroviária. Com uns poucos trocados comprou pão e mortadela para alimentar o grupo. Amontoados dormiram.

Pela manhã saiu a procurar trabalho. Num armazém dos arredores (que os havia muitos, à época), empregou-se para consertar sacos de aniagem. Deram-lhe uma agulha longa, de fundo largo, barbante fino e uma faca afiada – não havia tesoura.

Empregado, buscou lugar para morar, e um ensacador do próprio armazém lhe indicou uma casa no morro quase em frente, onde poderia locar um quarto.
Foi o que fez: entendeu-se com o português proprietário da casa, que lhe mostrou um quarto servido de porta e janela, a cozinha logo ao lado, um tanque comum, de concreto velho e limoso, e o mictório também comum, que servia a mais duas famílias, na mesma edificação, além de um cabra solteiro que ocupava o quarto da frente.

Vizinhança pacata.

Um dia, subindo pelo caminho, trombou com o vizinho solteiro, Zózimo, e assustado com o encontrão, encolheu-se, dando passagem ao outro. Ao observar seu enleio, Zózimo gostou, sentiu-se forte perante aquele homenzinho mirrado e medroso. A partir daquele dia, procurava encontrá-lo em situação de desvantagem, e o desacatava, a troco de nada.
De seu lado, Nezinho, nosso personagem, passou a evitá-lo, fugindo de seu caminho, permanecendo dentro de casa, quando o sabia nos arredores.

A voracidade de Zózimo em afrontar o medo de Nezinho só fazia crescer.

Certo dia, recebendo a féria da semana, Nezinho pediu ao capataz autorização para sair mais cedo.
Passou pela vendinha e comprou um pedaço de bacalhau, petisco de que sua menina do meio gostava. 
Subiu sossegado o morro – era cedo para Zózimo -, entrou pelos fundos, chamou a filha e se encaminhou para a pequena varanda, sem desfazer-se do embrulho.

Sentou-se no terceiro degrau da escadinha e começou a desembrulhar o bacalhau.
A menina sentou-se no degrau acima e ficou olhando, enquanto o pai sacava a faca de trabalho do bolso da camisa e cortava uma lasca do peixe seco e salgado, que comeu sem careta. A lasca seguinte era dela. O sal mais intenso fica na superfície do peixe, você sabe, o que deixaria mais suave a parte interna do pedaço. Mas, um detalhe: o peixe acessível aos mais pobres era aquela parte das beiradas, de pouco mais de meio centímetro de espessura, que absorvia loucamente o sal.
Mas não fazia mal: pai e filha, juntos, em silêncio, iam comendo as terríveis lasquinhas com enlevo.

Já lá estavam havia uns quinze minutos quando viram chegar o Zózimo, balançando o corpo, distraído. Até que os avistou.
Sua cara se contraiu num sorriso escarninho; caminhou direto para pai e filha.

- Que tu tem aí, Nezinho? Ah, já vejo! Me dá esse bacalhau, Nezinho.

Pela primeira vez, talvez pela presença da filha, Nezinho não teve aquela reação imediata de servilismo. Ainda que interiormente fervesse de ira e medo, permaneceu calado, impassível.

- Dá esse bacalhau, Nezinho!

A voz, agora, além de imperiosa e impaciente, era brutal.

A menina se encolheu, olhando para o pai, que trazia agora o sobrolho carregado.

- Já não te falei pra me ...

Surpreendendo o próprio dono, a mão de Nezinho moveu-se com rapidez, e interrompeu o gesto de Zózimo em direção ao peixe.

Foi um golpe só.


A faca entrou fundo e salgou a carne lacerada. 

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

FELIPE MASSA SE APOSENTA


       Felipe Massa, aquele menino outrora veloz e arrojado, declarou neste 1.º de setembro, que se aposentará da Fórmula 1 ao final deste ano. E me falta inspiração para chorar por ele a frustração dos seus e nossos sonhos, depois do muito que ele fez, até àquele acidente em que foi ferido na testa de modo tão assustador.

       Ele era um garotinho, quando viajou na carroceria do veículo de seu pai, "pilotando" seu pequeno kart, recém adquirido em São Paulo.

     E era ainda um garoto, quando estreou na Fórmula 1, enchendo de esperanças os corações brasileiros, depois da perda de nosso herói principal, que, aliás, fora precedido por outros heróis não menos valorosos.

       Pode ser romantismo de minha parte, mas Massa nunca mais foi o mesmo desde aquele acidente.

         Ele era tão arrojado, não era? Tão corajoso ...

           Por isso não merece que eu fique dizendo tolices, à falta de inspiração para louvar seu talento, sua coragem, seu esforço, enquanto durou essa carreira da qual ele se orgulha.

       Vocês, que conhecem corrida melhor que eu, que talvez lembrem de fatos que desconheço, não deixem de louvá-lo. Ele nos representou bem, até agora, é um homem honrado numa terra onde tanto se carece de honra.

        Não deixem de louvá-lo. 

        Boa noite.