domingo, 16 de outubro de 2016

ROCK CONSPIRACY


Se preciso, ele até que se sentava de frente para a mesa.
Do contrário, estendia-se paralelamente à sua lateral, apoiando o quadril na beirada da cadeira, o cotovelo no tampo e, na mão correspondente, descansava o rosto; não raro, desmanchava o próprio cabelo, junto à testa, ou junto à nuca. Se o assunto o interessava, firmava-se na cadeira, sob a qual cruzava os tornozelos e espetava no interlocutor um par de olhos de falcão, baixava o nariz como se fosse mergulhar num vôo arrasador e contraía a garganta; ao mesmo tempo, franzia o sobrolho e alteava as sobrancelhas; finda a fala, costumava levantar a cabeça, girando-a lateralmente uns quinze, vinte graus, e relancear o ambiente numa mirada sobranceira. Daí voltava ao interlocutor, ao mesmo tempo em que buscava diante de si algum objeto para ocupar as mãos.

Esse, o Rodrigo Ferraz.

Depois de longo e tenebroso inverno, eis que o encontro, seis anos mais velho (o que não é nada, nem representa nada), porém quase austero, principalmente considerando-se o ambiente: o espaço Black Jaw, no Mendes Convention, ali na Av. Francisco Glicério. Empunhava um baixo e honrava sua posição.
Fiquei bem contente de encontrar seu convite, via e-mail, quando acabava de voltar de Niterói, onde fora visitar minha linda filha e sua não menos linda família.
Pensei então na oportunidade de rever não só aquele amigo, cujas qualidades musicais desconhecia, como também toda a turma normalmente entusiasmada de Mongaguá, cidade que encanta pela simplicidade nas relações sociais.
Ah, que bom, quantos colegas, ex-alunos, pessoas queridas cuja convivência perdi, tão logo parei de ministrar aulas!
Surpresa: de Mongaguá, só vi um ex-aluno, simpático e agradável como todos. Cibele Schmidtke, cadê? Regina Célia, moradora de Praia Grande? Diego Néri, Ermógenes Palácio e todo o grupo ligado à música, ligado à escola, ligado ao Rodrigo? Onde se enfiou todo mundo?

Ao fim do espetáculo, Rodrigo e o vocalista, Vinny Serra, agradeceram a acolhida de nossa cidade, chamando-a “nossa metrópole” (deles, olha que elegância), e lembrei daquele aluno “filho do prof. Chico”, que adorava a Livraria Martins Fontes! Esse pessoal de Mongaguá me fez rever meus conceitos sobre Santos, e observar tantos pequenos encantos e confortos de que não costumamos nos dar conta.

E que qualidade, que personalidade tem a banda! No sábado, dia 8, cheguei a ver o grupo do Chay Suede na TV e juro, têm que comer muita papinha Nestlé até chegar à categoria, ao som, ao encanto da Rock Conspiracy! Como diria o Leão Vidal Sion, “é nóis!”
Mesmo sem ver a turma, conforme esperava, fui bem feliz, com o espetáculo.
A vida nos dá tantas oportunidades de sermos felizes, ainda que tenha custado horas, e anos, de ensaio, tanta concentração, tanta vida investida ali, não por mim, não por você, mas por um grupo de rapazes, homens, cuja alegria é ver alegria em nossos olhos, em nossa reação.

Por tudo que entregaram, pela honestidade do trabalho, pela autenticidade e pela intensidade, espero-os de volta.


Não se demorem!

sábado, 1 de outubro de 2016

              • ESTUPRO

  
Estreou a 22 de setembro último, filme dirigido por Marco Dutra, “O Silêncio do Céu”, estrelado por Carolina Dieckmann e Leonardo Sbaraglia.
Nele, um homem chega à casa e vê a mulher sendo estuprada por dois homens. Diante da cena, ele foge, por medo patológico, deixando-a à mercê dos criminosos.
Por algum motivo o casal opta por não denunciar o delito, e a mulher continua a sofrer violências, como, mais tarde, ver-se face à face com um dos estupradores.
A crítica d’O Estado, de 30 de agosto, focava o aspecto de a violência contra a mulher persistir. Por variadas razões. A Folha entendeu que o cerne do filme é a falta de comunicação entre marido e mulher.
Não importa, ou pouco importa, diante da polêmica que se instalou, na mesma semana de setembro, com a publicação de uma pesquisa que informa que um, entre cada três  brasileiros, entende que a mulher é culpada pelo estupro sofrido, a partir das saias curtas ou decotes generosos.

Sei não. Os estupros noticiados costumam ocorrer com mulheres trabalhadoras, aquelas que normalmente usam calças compridas, não saias curtas. Quanto aos decotes, narro uma experiência: quando lecionava em Mongaguá, observei que os homens sequer relanceavam o olhar pelos belos seios exibidos em decotes ousados, por moças que subiam ao ônibus, entre Santos e aquela cidade; e vejam, quando a mulher vem de um plano mais abaixo (a rua), subindo para um plano mais alto, a exibição costuma ser efetivamente bela. Pois não provocava nenhum frisson, nem mesmo um olhar, repito, o que me levava a pensar que seios não eram mais objeto de desejo dos homens.
Se o argumento decote/saia curta fosse sério, a cidade do Rio de Janeiro seria campeã absoluta de estupros, os cariocas todos com os olhos injetados de desejos lúbricos.
Assim, parece-me que a teoria do traje como causa não se sustenta.
Por que, então? Ou, se preferirmos a pergunta infame, de quem a culpa?

O tipo de homem que estupra acha que a mulher é pasto seu, e assim deve simplesmente estar disponível, e, pior, quer estar disponível, como mulher, a servir o homem.
Se você verificar documentários sobre guerras, seja na Europa, seja na Ásia ou África, constatará que o homem tem a compulsão de estuprar as mulheres – na África, consultados, eles se declararam obrigados, como se fosse desonroso não utilizar a aberração, para eles natural, de estuprar
Mas o que considero a maior violência, porque dirigida a todas as mulheres conscientes, veja:
- nos anos sessenta ainda pontuava, no estudo do Direito Penal, o pensamento do jurista Nelson Hungria, por sinal detentor de excelente didática. A obra dele deve ter sido escrita entre os anos 40, 50, quiçá atualizada nos 60, e até aí as mulheres não exageravam em nada; só durante os 60 surgiu Mary Quant e a míni saia. Pois bem, o novel senhor escreveu textualmente em um de seus volumes do Tratado de Direito Penal, que  se o homem precisava segurar a mulher, durante, quem guiaria o ceguinho para concretizar o ato?
Juro, ele escreveu isso, textualmente! Logo, para o homem ter sucesso, a mulher haveria, necessariamente, de colaborar, e nesse caso não haveria estupro!
Pois, nos anos 2.000, conheci um professor, hoje diretor de escola, que partilhava dessa opinião: como o homem podia segurar a mulher e estuprá-la, ao mesmo tempo?
Como disse uma amiga, aparentemente os dois nunca estiveram com mulher.
Pois, quer saber?
Cansei de ouvir essa conversa, partida de homens civilizados!
Esclareçamos, pois: qualquer pessoa que tenha praticado sexo heterossexual sabe que o tórax de um homem, sobre o tórax da mulher, com intenção de paralisá-la, é instrumento eficiente, pelo volume, pelo peso, pela pressão; depois, basta o braço esquerdo dele sobre o direito dela, e só restaria à mulher seu braço esquerdo, fraco e inapto para segurar o braço direito do homem e mão respectiva, livres, portanto, para guiarem o “ceguinho”. Quanto às pernas, sabemos perfeitamente como funcionam, umas e outras.
O homem que ponha isso em dúvida é incompetente (*), ou usa de má fé.

Embora o texto já esteja longo, é preciso que se diga que ensinar os meninos a não estuprarem meninas não é o caminho para resolver o problema.
        Preciso, mesmo, é mudar a mentalidade, a partir das mulheres.
Depois do estupro coletivo sofrido por uma garota, dopada, no Rio de Janeiro, não foi só uma mulher que ouvi dizer que, afinal, ela era “rodada” ! Ou seja, provavelmente uma, em cada três mulheres, achou justo o estupro coletivo de uma pessoa desacordada, porque a vítima era “rodada”.
       Engraçado! Porque a lei penal não discrimina a prostituta, considerando-a passível de ser vítima de estupro.

Não esqueçamos: educar é passar, antes de palavras, atitudes.
        Voltemos, então, à pergunta infame: de quem, a culpa?


Mulheres preconceituosas já estão educando os homens do futuro. 


(*) Incompetente é eufemismo para "nunca esteve com mulher".