sábado, 17 de dezembro de 2016

DE URGÊNCIA.

Perto dos sessenta anos dei-me conta da urgência em viver - afinal, não haveria outros sessenta me esperando.
Mas, céus, sou muito devagar, desde bebê, não seria agora que ficaria esperta, animada, frequentando festas ou pessoas.
Assim, a vida prosseguiu e se alongou de mim, que persisto em ficar em casa, mesmo com um surpreendente céu azul, como o de ontem, que vi forçada pelas circunstâncias, que me puseram na rua - visita ao dentista, oh festa!
Entretanto, como noticiei esta semana, faleceu um amigo e colega de turma, o Fred, pessoa sempre muito alegre e divertida.
Essa perda me entristeceu sobremaneira, e o sentimento se intensificou quando, no velório, vi outros colegas, e tomei conhecimento de dores que afligem outras pessoas, que se esforçam para manterem-se equilibradas em face dos infortúnios. Isso me tem levado a pensar, muito, na necessidade de nos assistirmos, de nos aproximarmos, de nos cuidarmos mais.
Você conhece alguém e tem com essa pessoa uma convivência cordial.
Convivência cordial, apesar do "cordis", não é do coração, é das relações sociais.
Você não deve ficar longe dos seus amigos, embora o sábio Salomão recomende que  sejamos parcimoniosos em "permanecer" nas casas das pessoas. De fato, o que ele recomenda é que você não seja "mala", não se abolete na casa dos outros. Mas ele também diz que, na aflição, é melhor o amigo perto que o irmão longe. Para que você recorra ao amigo perto, imprescindível que a amizade seja cultivada, como a planta no vaso, no jardim: água em tempos certos, podas, afofar a terra, adubar, coisas indispensáveis para sua planta ficar bonita e saudável.
Assim a amizade.
Por isso preciso ir com urgência à loja Roupa Minha e Afins. Por circunstâncias várias lá não tenho ido, e é Natal; Elisete e Margarete são duas amigas preciosas e carinhosas, sempre dispostas a passar um café fresco tão logo você chegue.
Vou lá. Se correr, pegá-las-ei com a loja aberta, ainda hoje.
Fui.

sábado, 19 de novembro de 2016

DE PRÊMIO NOBEL


Ontem, qualquer coisa me levou ao verso

“passas em exposição
passas sem ver teu vigia
catando a poesia
que entornas no chão”

do Chico Buarque de Holanda. E a seguir me veio, do mesmo autor:

         E te farei as vontades
Direi meias verdades
Sempre à meia-luz.

Hoje, lembrei Caetano:

         “Você não gosta de mim
                                     não sinto o ar se aquecer
         ao redor de você,
                                     quando volto da estrada
                                     por que será que é assim,
                                     seja de longe ou de perto,
                                     no errado ou no certo,
                                     na fúria ou na calma?”

                           
Ainda do Caetano:

                                     Tanta gente canta, tanta gente cala
                                     Tantas almas esticadas no curtume
Sobre toda a estrada, sobre toda a sala
Paira, monstruosa, a sombra do ciúme.


Mas você pode preferir Arnaldo Antunes:

O meu lençol é o que restou
É o que me aquece sem me dar calor
Se eu não tenho o meu amor
Eu tenho a minha dor

A sala, o quarto, a casa está vazia
A cozinha, o corredor
Se ela me deixou, a dor é minha
A dor é minha dor ....

Ou, quem sabe, Lulu Santos:
                                     
Eu te amo calado
Como quem ouve uma sinfonia
De silêncio e de luz
Nós somos medo e desejo
Somos feitos de silêncio e som
Tem certas coisas que eu não sei dizer.

(Imagina, então, se soubesse!)


Veja, agora, versos da poeta portuguesa Florbela Espanca, que foram musicados e gravados por Fagner:

                            Longe de ti, são ermos os caminhos,
                            Longe de ti não há luar, nem rosas
                            Longe de ti, há noites silenciosas,
                            Há dias sem calor, beirais sem ninhos.

         Versos de Fernando Pessoa:

                            Para ser grande, sê inteiro:
                            Nada teu exagera ou exclui
                            Põe quanto és no mínimo que fazes.
                            Assim, a lua toda no lago brilha
                            Porque alta vive.

         Com estes versos dos poetas portugueses você tem base para comparar a obra erudita, deles, com a de alguns de nossos poetas do cancioneiro popular.


         Feitas as contas, qualquer dos nossos, dentre tantos outros, faz jus ao Nobel de Literatura. Com a vantagem de que, se premiado, iria a Oslo receber, por certo.

sábado, 5 de novembro de 2016

BRÓGUI

Quando finalmente decidi fazer o blog, pensei  "Vou nomeá-lo "Meu Brógui",  em homenagem às pessoas simples, perseguidas  por aqueles que se perturbam com seu modo de falar.
Quando jovem, trabalhei num escritório que tomou a seu serviço um  garoto de uns doze anos, oriundo do nordeste brasileiro, região onde as pessoas têm bastante imaginação no uso da palavra e que por isso, contrariamente ao nosso costume de chamar os meninos de José, Antônio, Ricardo, batizam-nos de Sigmaringa! Ozualdo! Audálio!
Essas pessoas têm audácia, mas antes têm imaginação, e inovam sem qualquer falso pudor. 
Voltando ao escritório e ao garoto de doze anos, pelo Natal o “patrão”, além do salário, pagou também uma gratificação.  O garoto ficou tão feliz que,  de  pronto, desejou retribuir ao empregador – como?  - comprando-lhe um "vrido" de vinho!
A atitude foi tão fidalga, e tão espontânea, que embora tendo registrado, não desejei corrigir o “vidro”. Que permaneceu na minha memória como um "vrido" de elegância.
O tempo passou e encontrei,  depois do "vrido", o "frilto". Aquele para água, manja?  E permaneci apenas observando,  sem interferir no que considero um terreno pessoal, esse, onde o seu ouvido ignora as formas mais fáceis e adota as mais complicadas,  para usar com os lábios.
Então, já mais recentemente, coisa de uns quinze anos atrás, eis que cruzo com uma senhora muito simpática, mãe de Bruna, de Edmundo e de um outro, excelente jogador de futebol, cujo nome, por banal, não consegui gravar. Pois essa senhora, que conheci por admirar os “passes” desse filho mais velho na rua onde se situa o mercadinho do bairro, morava “ali (dizia ela, apontando sua casinhola feita com aquelas chapas de compensado recuperado de obras - não moro no Morumbi, mas em frente ao meu prédio havia uma favela), naquele “srobadinho”!
Agora você, que apresentou trabalhos de teatro, na escola, sob orientação da professora de Português, tente dizer “srobadinho”! Vamos lá, tente, eu espero.
Difícil, não é?
E aí você vê aquelas celeumas provocadas por pessoas que querem “simplificar” obras de nossos escritores, para torná-las “acessíveis” ao nosso povo.
É o mesmo que dizer que essas pessoas têm um defeito de nascença, que as impossibilita de ler e entender porque é “difícil”. Difícil é o que elas criam, por talento, esse, inato, e por desdém à chamada “norma culta”, da qual não fazem a mínima questão. Ouçam as melodias (e as letras) do Djavan: já viram algo mais imponderável? A melodia de Oceano? A letra de Oceano? “Dava prá ver o tempo ruir” – Quem jamais ousou criar algo assim, tão louco e tão lindo? Você poderá argumentar que o Djavan não é inculto - claro que não é! Mas de onde ele vem? E o povo iletrado, de lá e de cá, acaso não o entende?
Nosso povo não é burro, nem retardado, nem fala errado; fala diferente. Porque quer, não porque não sabe. Ele simplesmente não quer saber; sua maneira de falar é mais doce, mais melodiosa: ao invés de dizer um "venha cá" autoritário, prefere o "chegue", ou "se achegue", com aquela manemolência que a TV faz questão de mostrar em cenas sensuais. Eles não dizem "o filho a seguir a este" - preferem "aneixo", corruptela de anexo. Não é um luxo? No Norte e Nordeste encontramos fraseado castiço, que não vemos por aqui.
Conservemos, pois, intocadas, as obras de nossos autores, e deixemos o linguajar de nosso povo, já tão prejudicado pela televisão.
Concluo: por eles, pretendi criar o “Brógui”.
Mas alguém chegou antes de mim. Por onde você vê que essas formas estão bem disseminadas, quer gostemos, quer não.
O povo é sábio, creia. E como tal, muito imitado.


domingo, 16 de outubro de 2016

ROCK CONSPIRACY


Se preciso, ele até que se sentava de frente para a mesa.
Do contrário, estendia-se paralelamente à sua lateral, apoiando o quadril na beirada da cadeira, o cotovelo no tampo e, na mão correspondente, descansava o rosto; não raro, desmanchava o próprio cabelo, junto à testa, ou junto à nuca. Se o assunto o interessava, firmava-se na cadeira, sob a qual cruzava os tornozelos e espetava no interlocutor um par de olhos de falcão, baixava o nariz como se fosse mergulhar num vôo arrasador e contraía a garganta; ao mesmo tempo, franzia o sobrolho e alteava as sobrancelhas; finda a fala, costumava levantar a cabeça, girando-a lateralmente uns quinze, vinte graus, e relancear o ambiente numa mirada sobranceira. Daí voltava ao interlocutor, ao mesmo tempo em que buscava diante de si algum objeto para ocupar as mãos.

Esse, o Rodrigo Ferraz.

Depois de longo e tenebroso inverno, eis que o encontro, seis anos mais velho (o que não é nada, nem representa nada), porém quase austero, principalmente considerando-se o ambiente: o espaço Black Jaw, no Mendes Convention, ali na Av. Francisco Glicério. Empunhava um baixo e honrava sua posição.
Fiquei bem contente de encontrar seu convite, via e-mail, quando acabava de voltar de Niterói, onde fora visitar minha linda filha e sua não menos linda família.
Pensei então na oportunidade de rever não só aquele amigo, cujas qualidades musicais desconhecia, como também toda a turma normalmente entusiasmada de Mongaguá, cidade que encanta pela simplicidade nas relações sociais.
Ah, que bom, quantos colegas, ex-alunos, pessoas queridas cuja convivência perdi, tão logo parei de ministrar aulas!
Surpresa: de Mongaguá, só vi um ex-aluno, simpático e agradável como todos. Cibele Schmidtke, cadê? Regina Célia, moradora de Praia Grande? Diego Néri, Ermógenes Palácio e todo o grupo ligado à música, ligado à escola, ligado ao Rodrigo? Onde se enfiou todo mundo?

Ao fim do espetáculo, Rodrigo e o vocalista, Vinny Serra, agradeceram a acolhida de nossa cidade, chamando-a “nossa metrópole” (deles, olha que elegância), e lembrei daquele aluno “filho do prof. Chico”, que adorava a Livraria Martins Fontes! Esse pessoal de Mongaguá me fez rever meus conceitos sobre Santos, e observar tantos pequenos encantos e confortos de que não costumamos nos dar conta.

E que qualidade, que personalidade tem a banda! No sábado, dia 8, cheguei a ver o grupo do Chay Suede na TV e juro, têm que comer muita papinha Nestlé até chegar à categoria, ao som, ao encanto da Rock Conspiracy! Como diria o Leão Vidal Sion, “é nóis!”
Mesmo sem ver a turma, conforme esperava, fui bem feliz, com o espetáculo.
A vida nos dá tantas oportunidades de sermos felizes, ainda que tenha custado horas, e anos, de ensaio, tanta concentração, tanta vida investida ali, não por mim, não por você, mas por um grupo de rapazes, homens, cuja alegria é ver alegria em nossos olhos, em nossa reação.

Por tudo que entregaram, pela honestidade do trabalho, pela autenticidade e pela intensidade, espero-os de volta.


Não se demorem!

sábado, 1 de outubro de 2016

              • ESTUPRO

  
Estreou a 22 de setembro último, filme dirigido por Marco Dutra, “O Silêncio do Céu”, estrelado por Carolina Dieckmann e Leonardo Sbaraglia.
Nele, um homem chega à casa e vê a mulher sendo estuprada por dois homens. Diante da cena, ele foge, por medo patológico, deixando-a à mercê dos criminosos.
Por algum motivo o casal opta por não denunciar o delito, e a mulher continua a sofrer violências, como, mais tarde, ver-se face à face com um dos estupradores.
A crítica d’O Estado, de 30 de agosto, focava o aspecto de a violência contra a mulher persistir. Por variadas razões. A Folha entendeu que o cerne do filme é a falta de comunicação entre marido e mulher.
Não importa, ou pouco importa, diante da polêmica que se instalou, na mesma semana de setembro, com a publicação de uma pesquisa que informa que um, entre cada três  brasileiros, entende que a mulher é culpada pelo estupro sofrido, a partir das saias curtas ou decotes generosos.

Sei não. Os estupros noticiados costumam ocorrer com mulheres trabalhadoras, aquelas que normalmente usam calças compridas, não saias curtas. Quanto aos decotes, narro uma experiência: quando lecionava em Mongaguá, observei que os homens sequer relanceavam o olhar pelos belos seios exibidos em decotes ousados, por moças que subiam ao ônibus, entre Santos e aquela cidade; e vejam, quando a mulher vem de um plano mais abaixo (a rua), subindo para um plano mais alto, a exibição costuma ser efetivamente bela. Pois não provocava nenhum frisson, nem mesmo um olhar, repito, o que me levava a pensar que seios não eram mais objeto de desejo dos homens.
Se o argumento decote/saia curta fosse sério, a cidade do Rio de Janeiro seria campeã absoluta de estupros, os cariocas todos com os olhos injetados de desejos lúbricos.
Assim, parece-me que a teoria do traje como causa não se sustenta.
Por que, então? Ou, se preferirmos a pergunta infame, de quem a culpa?

O tipo de homem que estupra acha que a mulher é pasto seu, e assim deve simplesmente estar disponível, e, pior, quer estar disponível, como mulher, a servir o homem.
Se você verificar documentários sobre guerras, seja na Europa, seja na Ásia ou África, constatará que o homem tem a compulsão de estuprar as mulheres – na África, consultados, eles se declararam obrigados, como se fosse desonroso não utilizar a aberração, para eles natural, de estuprar
Mas o que considero a maior violência, porque dirigida a todas as mulheres conscientes, veja:
- nos anos sessenta ainda pontuava, no estudo do Direito Penal, o pensamento do jurista Nelson Hungria, por sinal detentor de excelente didática. A obra dele deve ter sido escrita entre os anos 40, 50, quiçá atualizada nos 60, e até aí as mulheres não exageravam em nada; só durante os 60 surgiu Mary Quant e a míni saia. Pois bem, o novel senhor escreveu textualmente em um de seus volumes do Tratado de Direito Penal, que  se o homem precisava segurar a mulher, durante, quem guiaria o ceguinho para concretizar o ato?
Juro, ele escreveu isso, textualmente! Logo, para o homem ter sucesso, a mulher haveria, necessariamente, de colaborar, e nesse caso não haveria estupro!
Pois, nos anos 2.000, conheci um professor, hoje diretor de escola, que partilhava dessa opinião: como o homem podia segurar a mulher e estuprá-la, ao mesmo tempo?
Como disse uma amiga, aparentemente os dois nunca estiveram com mulher.
Pois, quer saber?
Cansei de ouvir essa conversa, partida de homens civilizados!
Esclareçamos, pois: qualquer pessoa que tenha praticado sexo heterossexual sabe que o tórax de um homem, sobre o tórax da mulher, com intenção de paralisá-la, é instrumento eficiente, pelo volume, pelo peso, pela pressão; depois, basta o braço esquerdo dele sobre o direito dela, e só restaria à mulher seu braço esquerdo, fraco e inapto para segurar o braço direito do homem e mão respectiva, livres, portanto, para guiarem o “ceguinho”. Quanto às pernas, sabemos perfeitamente como funcionam, umas e outras.
O homem que ponha isso em dúvida é incompetente (*), ou usa de má fé.

Embora o texto já esteja longo, é preciso que se diga que ensinar os meninos a não estuprarem meninas não é o caminho para resolver o problema.
        Preciso, mesmo, é mudar a mentalidade, a partir das mulheres.
Depois do estupro coletivo sofrido por uma garota, dopada, no Rio de Janeiro, não foi só uma mulher que ouvi dizer que, afinal, ela era “rodada” ! Ou seja, provavelmente uma, em cada três mulheres, achou justo o estupro coletivo de uma pessoa desacordada, porque a vítima era “rodada”.
       Engraçado! Porque a lei penal não discrimina a prostituta, considerando-a passível de ser vítima de estupro.

Não esqueçamos: educar é passar, antes de palavras, atitudes.
        Voltemos, então, à pergunta infame: de quem, a culpa?


Mulheres preconceituosas já estão educando os homens do futuro. 


(*) Incompetente é eufemismo para "nunca esteve com mulher".

sábado, 3 de setembro de 2016

PAU PRA TODA OBRA


Chegou a São Paulo num pau-de-arara. Acredito que isso não exista mais.
Trazia consigo mulher e três filhos pequenos.

De trem, desceu para Santos, e na primeira noite amontoou-se com a família na estação ferroviária. Com uns poucos trocados comprou pão e mortadela para alimentar o grupo. Amontoados dormiram.

Pela manhã saiu a procurar trabalho. Num armazém dos arredores (que os havia muitos, à época), empregou-se para consertar sacos de aniagem. Deram-lhe uma agulha longa, de fundo largo, barbante fino e uma faca afiada – não havia tesoura.

Empregado, buscou lugar para morar, e um ensacador do próprio armazém lhe indicou uma casa no morro quase em frente, onde poderia locar um quarto.
Foi o que fez: entendeu-se com o português proprietário da casa, que lhe mostrou um quarto servido de porta e janela, a cozinha logo ao lado, um tanque comum, de concreto velho e limoso, e o mictório também comum, que servia a mais duas famílias, na mesma edificação, além de um cabra solteiro que ocupava o quarto da frente.

Vizinhança pacata.

Um dia, subindo pelo caminho, trombou com o vizinho solteiro, Zózimo, e assustado com o encontrão, encolheu-se, dando passagem ao outro. Ao observar seu enleio, Zózimo gostou, sentiu-se forte perante aquele homenzinho mirrado e medroso. A partir daquele dia, procurava encontrá-lo em situação de desvantagem, e o desacatava, a troco de nada.
De seu lado, Nezinho, nosso personagem, passou a evitá-lo, fugindo de seu caminho, permanecendo dentro de casa, quando o sabia nos arredores.

A voracidade de Zózimo em afrontar o medo de Nezinho só fazia crescer.

Certo dia, recebendo a féria da semana, Nezinho pediu ao capataz autorização para sair mais cedo.
Passou pela vendinha e comprou um pedaço de bacalhau, petisco de que sua menina do meio gostava. 
Subiu sossegado o morro – era cedo para Zózimo -, entrou pelos fundos, chamou a filha e se encaminhou para a pequena varanda, sem desfazer-se do embrulho.

Sentou-se no terceiro degrau da escadinha e começou a desembrulhar o bacalhau.
A menina sentou-se no degrau acima e ficou olhando, enquanto o pai sacava a faca de trabalho do bolso da camisa e cortava uma lasca do peixe seco e salgado, que comeu sem careta. A lasca seguinte era dela. O sal mais intenso fica na superfície do peixe, você sabe, o que deixaria mais suave a parte interna do pedaço. Mas, um detalhe: o peixe acessível aos mais pobres era aquela parte das beiradas, de pouco mais de meio centímetro de espessura, que absorvia loucamente o sal.
Mas não fazia mal: pai e filha, juntos, em silêncio, iam comendo as terríveis lasquinhas com enlevo.

Já lá estavam havia uns quinze minutos quando viram chegar o Zózimo, balançando o corpo, distraído. Até que os avistou.
Sua cara se contraiu num sorriso escarninho; caminhou direto para pai e filha.

- Que tu tem aí, Nezinho? Ah, já vejo! Me dá esse bacalhau, Nezinho.

Pela primeira vez, talvez pela presença da filha, Nezinho não teve aquela reação imediata de servilismo. Ainda que interiormente fervesse de ira e medo, permaneceu calado, impassível.

- Dá esse bacalhau, Nezinho!

A voz, agora, além de imperiosa e impaciente, era brutal.

A menina se encolheu, olhando para o pai, que trazia agora o sobrolho carregado.

- Já não te falei pra me ...

Surpreendendo o próprio dono, a mão de Nezinho moveu-se com rapidez, e interrompeu o gesto de Zózimo em direção ao peixe.

Foi um golpe só.


A faca entrou fundo e salgou a carne lacerada. 

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

FELIPE MASSA SE APOSENTA


       Felipe Massa, aquele menino outrora veloz e arrojado, declarou neste 1.º de setembro, que se aposentará da Fórmula 1 ao final deste ano. E me falta inspiração para chorar por ele a frustração dos seus e nossos sonhos, depois do muito que ele fez, até àquele acidente em que foi ferido na testa de modo tão assustador.

       Ele era um garotinho, quando viajou na carroceria do veículo de seu pai, "pilotando" seu pequeno kart, recém adquirido em São Paulo.

     E era ainda um garoto, quando estreou na Fórmula 1, enchendo de esperanças os corações brasileiros, depois da perda de nosso herói principal, que, aliás, fora precedido por outros heróis não menos valorosos.

       Pode ser romantismo de minha parte, mas Massa nunca mais foi o mesmo desde aquele acidente.

         Ele era tão arrojado, não era? Tão corajoso ...

           Por isso não merece que eu fique dizendo tolices, à falta de inspiração para louvar seu talento, sua coragem, seu esforço, enquanto durou essa carreira da qual ele se orgulha.

       Vocês, que conhecem corrida melhor que eu, que talvez lembrem de fatos que desconheço, não deixem de louvá-lo. Ele nos representou bem, até agora, é um homem honrado numa terra onde tanto se carece de honra.

        Não deixem de louvá-lo. 

        Boa noite.

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

PATRIAM CHARITATEM ET LIBERTATEM DOCUI


Um sujeito vindo do interior do Estado, com um plano determinado de vida, baseado em conhecimento com pessoas ligadas a um partido político, deu-se muito bem quanto ao que pretendia.
Ressalva: era pessoa de trabalho. Mereceu o sucesso que alcançou.
Daí, contudo, partiu para o desfrute de falar mal do povo do litoral, incluindo a nossa cidade no seu balaio de desdém. Cuspiu no prato em que comeu.
Esclareci-lhe que a cidade, além de intensa vida cultural, ocupava espaço de destaque no cenário político nacional, até ser “esvaziada” com o advento da “redentora”.
O sujeito manteve o sorrisinho de mofa.
O só fato de exibir o declarado sorrisinho mostrava o mau estofo de que se constituía.

Nossa cidade, para quem não sabe, é cheia de segredos, como uma mulher.
E agora, ao adquirir o livro do Jorge Caldeira, “ 101 Brasileiros Que Fizeram História”, da editora Estação Brasil, descobri fatos que não me ensinaram na escola, e ninguém me contou. Transcrevo, na íntegra, a fl. 135 do livro:

“Antônio Bento - * São Paulo, 1843 - + 1898.

ABOLICIONISMO ARMADO

Branco, advogado, ex-delegado de polícia, católico praticante, militante do Partido Conservador. Tem 39 anos de idade quando é um dos que jura, ao pé do caixão de Luís Gama, que continuaria sua luta. Dado seu passado, muitos duvidam.
Em menos de um ano monta uma rede logística instalada em locais que iam de sacristias a prostíbulos, um conjunto de fortalezas armadas em pontos-chave, um quilombo militarizado no bairro do Jabaquara, em Santos.
Com a cobertura de advogados, funcionários de estradas de ferro e, especialmente, de negros libertos, o grupo começa a promover fugas em massa e dar proteção armada aos foragidos para Santos, onde as autoridades locais decretam uma abolição local para proteger os quilombolas – que são 10 mil no momento da Abolição.”

        O livro limita-se a essas poucas e importantes informações sobre o assunto, porque trata de personalidades, não de fatos em si.
       
Os fatos em si dizem que o quilombo do Jabaquara era o segundo maior do Brasil, menor apenas que o de Palmares; além dele, havia em Santos o quilombo Pai Filipe, nas encostas do monte Serrat, onde fica hoje a garage do CET, e outro, na Ponta da Praia, de um homem branco conhecido como Garrafão. Daqui os fugitivos podiam seguir para outros lugares, abastecidos para viagem, ou obter empregos dentro mesmo da cidade.
Os fugitivos eram de fato acolhidos.
       
Todo um povo, inclusive damas da sociedade, donas de casa, envolvido numa luta odiada em todo o Estado, que vivia do e para o café; povo corajoso, disposto à luta e, principalmente, ético. Esse povo ensinava à Pátria a caridade, ao mesmo tempo que promovia a liberdade.

A abolição em Santos ocorreu em fevereiro e março de 1886, dois anos antes da Lei Áurea; na verdade, ela foi declarada três vezes, em três atos diferentes, entre os meses referidos.

        E para justificar plenamente o Patriam charitatem et libertatem docui, outra informação importante: José Bonifácio de Andrada e Silva libertou seus escravos em 1820, quase setenta anos antes da Lei Áurea.

        Some a esse todos os pequenos fatos que você conhece, do passado  e do presente, todas as pequenas generosidades em que nosso povo é pródigo, mormente com visitantes, sejam naturais ou estrangeiros, para tranqüilisar seu coração e sorrir, orgulhoso e feliz, em face dos tolos mofadores.












quinta-feira, 18 de agosto de 2016



Usain bolt, de novo



       DEPOIS DE VER A SAÍDA RUIM 

DE USAIN BOLT, NA CORRIDA DOS 

CEM METROS, E SUA ARRANCADA

RUMO À VITÓRIA, SEGUNDOS

DEPOIS, QUALQUER COISA QUE SE

ESCREVA SOBRE ELE É 

DESPICIENDA.
USAIN BOLT


       Acabei de ver Usain Bolt correr os aguardados 200 metros.

       Correr e vencer.

       E depois, como se tivesse acabado de ler o jornal, passear  galhardamente por toda a extensão do estádio, exibindo seu porte elegante, imperial, para um público que não se cansa de olhá-lo, admirá-lo como um deus. 

       Usain Bolt é talhado em ébano: músculos, veias, peito  largo e generoso, braços longos, dedos longos, pernas longas, pés longos. Sua cara não é exatamente bonita. Nem precisa: sua imagem sedutora se completa com uma voz de fazer inveja a qualquer galã conhecido.

       Em torno dele, girando quase como bobos da corte, os fotógrafos que querem pegar um ângulo diferente, colher um detalhe do sorriso, e correm junto dele e atrás dele naquele seu passeio afável e auto-suficiente, como se dissesse: Sou belo, sim, não tenho culpa, fui feito assim, me moldei assim!

       Esse físico espantoso foi talhado no dia a dia de exercícios certamente extenuantes, aos quais ele acrescentou o encanto de uma personalidade que gosta de se exibir, e essa veleidade torna esse passeio pelas pistas tão feliz para ele quanto para nós mesmos.

       O público o adora, grita seu nome, e ele recebe essas manifestações com naturalidade, sem lágrimas nos olhos, sem arroubos de emoção, apenas retribui os afagos com o afago de seus beijos de pontas de dedo (esse cara é um fenômeno!); quando se ajoelha diante do público, nas costas a bandeira da Jamaica, não há no gesto qualquer resquício de humildade, é simplesmente o cumprimento de um ritual de reconhecimento do mito e a exposição do mito à adoração popular.

       Homem e homens se reconhecem. Ele, na  verdade, é tudo que gostaríamos de ser e de viver, principalmente essa naturalidade diante do sucesso e da adoração. Ele recebe o que lhe é de direito, e acabou-se.

       Difícil, mesmo, é imaginar outra Olimpíada sem ele. 

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

SEM PEQUENO PRÍNCIPE


Antoine de Saint-Exupéry, ao contrário do que se pensa (ou já ninguém mais pensa) não se limitou a escrever o Pequeno Príncipe,
Conheço-lhe outra obra, da qual um dos capítulos vem bem a propósito de atos e situações que continuamos a viver - Terra dos Homens.

Exupéry foi piloto comercial entre os anos de 1926 e 1935. Já a partir de 1931 começou a trabalhar com o correio que se inaugurava aquele ano, entre Buenos Aires e Santiago do Chile. Os vôos chegavam à Patagônia, e sobrevoavam, naturalmente, a Cordilheira dos Andes.
 Dada a fragilidade dos aviões, os pilotos tinham grande preocupação, uns com os outros; os vôos não ultrapassavam 4.500 metros, enquanto a cordilheira chegava a 7000 metros; não havia qualquer tecnologia como hoje conhecemos, e o aviador se guiava, durante o dia, por acidentes geográficos, às vezes uma árvore, que avistavam pela janela do avião; à noite, pelas estrelas. Avaliem esse sistema, sobre os Andes!

Pois determinado dia de inverno, a noticia se espalha: Guillaumet não voltou!
E logo partem os companheiros para a cordilheira, onde se presumia o desaparecimento do amigo.
Por dias a fio eles se revezaram, avaliando as precárias possibilidades de sobrevivência do companheiro sob temperatura de quarenta graus negativos; não divisavam sinais do homem, ou da máquina.
Depois de uma semana, o grito ecoa pelos postos de embarque do sul: Guillaumet ... vivo!
Exupéry correu em busca do companheiro, encontrando-o em cinqüenta minutos. Extremamente debilitado, magro, exaurido, mas ainda em condições de contar ao colega todo seu infortúnio (que não cabe aqui); e confessou que se mantivera vivo, caminhando dia e noite, sem descanso, pelo pensamento de que em breve viria o degelo, e seu corpo, misturado à neve e à lama, deslizaria abismo abaixo, e dificilmente seria encontrado. E em meio ao frio e à fome, enregelado, angustiara-se pensando que, se isso acontecesse, sua mulher teria que esperar quatro anos para receber o valor do seguro por sua morte. E por esse amor doméstico, por essa hoje considerada quase banal preocupação familiar, por essa responsabilidade, ele caminhou, sem dormir, na neve e no gelo, perdendo seus objetos, indo e vindo, tonto, pelos mesmos caminhos, à medida em que a brancura prejudicava sua memória. Se parasse adormeceria, e uma vez adormecido não despertaria mais, e a mulher distante viveria anos de penúria.

Nos últimos dias os jornais noticiaram a vinda ao Brasil de um grupo de refugiados, que nesta condição competiriam na Olimpíada, entre eles Yusra Mardini, jovem síria de 18 anos, cuja família fugiu da Síria para a Turquia, e dali para a Europa.
Quando seu grupo familiar e outras pessoas faziam a travessia da Turquia para a Grécia, o barco, velho e danificado, parou por falha do motor. Yusra, a irmã e outra garota, saltaram para a água e rebocaram o barco, nadando três horas e meia, até atingir o litoral grego.

O francês, quando encontrado, comentou que o que ele fizera, aquela caminhada desvairada, sem bússola, rasgado, ferido, na neve e no gelo, nenhum animal, só um homem faria.

         Tenhamos esperança: ainda há homens, ainda há mulheres entre nós.

terça-feira, 2 de agosto de 2016

DE MUSICA, UM POUCO


Conheci ontem o jornalista Josimar Frazão. Ontem, na verdade, conheci o jornalista, porque a pessoa já conhecera antes, na Livraria Realejo.

Ele escreveu sobre música no Boqnews (manja o Boqnews, o  jornal do Boqueirão? Esse, em versão virtual.)
Descreveu-me matérias que publicara no periódico, deu-me indicações de como acessar, e lá fui eu.

Gostei. O estilo dele é intimista, quase coloquial; do material que li considero “O caminho das flores de Vanessa” o melhor; dá vontade de conhecer a obra da cantora.

Porém, surpreendente, para mim, foi “O Terno”, da matéria Vestimenta Musical? O Terno, banda que eu mesma só conhecia de nome. O Josimar considera que O Terno faz a linha psicodélica dos Mutantes, e inclui o Ronnie Von no grupo. Ronnie Von, “le petit prince”? Deve ser ignorância minha.

Em compensação, O Terno, insisto, me surpreendeu. É mesmo parente dos Mutantes. O jornalista acrescentou, nas matérias que li, uma peça de cada um dos artistas contemplados, e aqui ele franqueou a faixa ”Quando estamos todos dormindo” – acredito que o pessoal do meu grupo etário desconheça.

Fiquei pensando na pena que é esse problema de divulgação, ou a saturação de produção musical que nos desestimula a conhecer cantores ou grupos – serão os sertanejos? Claro! São os sertanejos! Porque o CD do qual foi escolhida a faixa citada é lançamento de 2014, quer dizer, outro dia, e ninguém comentou, não vi matéria em jornal, pôster em casa de discos, nada! E todo esse tempo, tome sertanejo! Nada contra sertanejo, mas a exclusividade é empobrecedora, ou não?

Fiquei feliz em conhecer o Josimar, jornalista, muito feliz em conhecer O Terno e Vanessa da Matta (os dois tt foram por minha conta, não garanto a correção), feliz em ter saído de casa. 

Se você quiser conversar sobre literatura atual, e música idem, procure conhecer o rapaz ali, na Realejo. Se ainda não conhece, aproveite para dar uma olhada no acervo da livraria, enquanto a sugestão é gratuita.



quarta-feira, 27 de julho de 2016

QUASE AMIZADE.


Ela lançou sobre mim um terrível olhar espanhol.

Aquilo não era um olhar, era um dardo eletrificado. Inflamado soaria melhor, mas, não, não era um olhar ardente, era um dardo gélido. E eletrificado.

Fiquei firme. Nem sei como segurei a face impassível - porque, sabe, doeu. Eu queria muito ter iniciado aquela amizade, e ela foi tão simpática: “Estava pensando em te convidar para um chope, mas você não bebe!”. Ela também gostara de conversar comigo! Imagina, havia já tempo que não topava com uma pessoa interessante, irônica, mais crítica que eu. Você sabe, sou bem esquisita, faço contato fácil, mas tenho dificuldade para amizade. Vejo sempre senões na personalidade alheia, que me atemorizam; e de repente noto certa afinidade de pensamento. Depois, sarcasmo pressupõe humor. Ela era divertida. E me convidava para sair (um início de amizade!). Mais que depressa respondi: “Ora, em vez de chope, tomo suco de laranja!”. Não pensei, não tive tempo pra pensar.

E então, aquilo.
Eu estava tão, mas tão dura, que não poderia aceitar sair com ninguém. Por menor que seja a despesa, é indispensável dividir os gastos. Ou oferecer-se para tanto. E ainda que assim não fosse, se ela me trouxesse de volta à minha casa eu não poderia convidá-la para entrar, ou visitar-me, num outro momento (você sabe como estava a minha casa, eu te contei). Quando ela pediu meu telefone, forneci meu número, e não perguntei o dela.

Foi aí que ela me fuzilou.

Fomos todos embora, ela nunca ligou, como é justo, e penso que de minha parte seria patético uma explicação, a esta altura.

Um embaraço indisfarçável, uma amizade frustrada.

Ruim. Muito ruim.


quinta-feira, 21 de julho de 2016

O MEU AMOR TEM UM JEITO MANSO QUE É SÓ SEU ...


Quando professora, cultivei o hábito de, a cada início de semestre, dizer aos alunos (sempre eram turmas novas) que viemos ao mundo para sermos felizes. Do contrário a Natureza não seria tão bonita.

Comentava que, como precisamos descansar, ao fim de cada jornada,  as aves voltam aos ninhos e seu cântico é mais abafado, até ao silêncio; o céu escurece, e dependendo da estação do ano, torna-se ametista, até o negro da “ausência de cor”. É a escuridão e o silêncio, para descansarmos efetivamente.

O amanhecer, por sua  vez, não ocorre abruptamente, mas se instala muito de leve, para que o despertar seja igualmente suave, e os pássaros começam a cantar aos poucos, e não como a abertura da Nona de Beethoven.

Da mesma forma a nossa manutenção: a beleza dos alimentos, o perfume de cada fruta, seu feitio (as células das laranjas, os grãos da romã), o odor da carne quando levada ao fogo, o seu dourado e suculência, tudo sem esquecer o sal, posto na água do mar na dose ideal, como deve ocorrer na panela, tudo para que seja prazeroso o ato de alimentar-se.

Precisamos nos reproduzir? Novamente o prazer, o encantamento, a partir da escolha do parceiro, a descoberta gradual (ou não) de seus encantos, odores, textura  de pele ou cabelo, cor dos olhos, sorriso, o abraço, a temperatura do abraço – quanta beleza, quantas  delícias!

Outro dia, após um encontro de congraçamento de fim de ano, no carro de alguém que me ofereceu carona, vi a Cida e o Sidney, indo em busca de seu automóvel, deixado logo além. Eles caminhavam pela calçada, afastados entre si, presos entretanto pelos dedos – não de mãos dadas, mas de dedos dados. Casal maduro, confiados um no outro, identificados um com o outro, seguiam tão lindos que meu coração se aqueceu com a doçura insuspeitada daquele comportamento. “Alegra-te com a mulher da tua mocidade”, recomenda o rei Salomão, “pelo seu amor sê atraído perpetuamente”.

“Eu te guio com os meus olhos”. Não foi o sábio Salomão quem disse isso, foi Aquele que “preparou caminhos para que andássemos neles”. Se o meu coração falivelmente humano se aqueceu com a ternura do casal Cida e Sidney, como você acha que Ele, cujo amor é perfeito, reagiu ao “guiá-los” pela calçada? Muito mais feliz do que eu, sem dúvida!

Amigos, cultivem-se. Nós mudamos, nossa aparência muda, claro, mas ao invés de recrudescermos os defeitos, cultivemos o carinho na forma de tratar o outro, seja o cônjuge, seu irmão ou irmã, seus pais, seu colega de trabalho, seu vizinho.

Mas no quesito cônjuge, olhe-o  como fazia quando o(a) conheceu; espie-o(a), quando ele/ela  estiver distraído, e nesse momento pense nas suas qualidades, em como ele/ela “bate” várias padarias para procurar a manteiga de que você gosta, ou o simples pão de queijo; agasalhe-o(a), quando o tempo esfriar; se não sabe fazer uma comidinha caprichada, faça um refresco; toque-o(a) - não são apenas os gatos  que gostam de ser “alisados”, seu amor também gosta.


A vida é muito curta, e a solidão muito longa. Preze aquilo que você tem; se não está bom, ame-o mais, para melhorar. E melhore-se, vocês merecem!

segunda-feira, 18 de julho de 2016

                               BRUXAS SOLTAS


O meio artístico sofreu este mês, só até o dia 13, três baixas lamentáveis, o falecimento de três cineastas do mais alto coturno:
- dia 02, Michael Cimino, americano, que fez nada mais, nada menos que “O Franco Atirador”;
- dia 04, Abbas Kiarostami, expoente do cinema iraniano, muitas vezes premiado na França e na Itália, poeta, pintor, ilustrador, roteirista, antes de ser diretor; é seu o filme “O Gosto de Cereja”;
- dia 13, Héctor Babenco, ‘brasileiro nascido na Argentina’, que viveu dois anos na Europa, onde participou do cenário cinematográfico, e veio para o Brasil aos 19 anos de idade.

Assisti, há muitos anos, “O Franco Atirador”, que me deixou siderada. Fui agora ao pai (GO) dos (OG) desinformados (LE) e descobri que dois anos depois do sucesso estrondoso do referido filme, Cimino fez “O Portal do Paraíso”, no qual foram gastos 100 milhões de dólares; o filme não arrecadou mais de 2% desse valor. Resultado: falência. Como é natural, ele perdeu importância, e não se recuperou.
A crítica aponta que o ponto central da obra de Cimino é o dilaceramento da América e dos americanos, e ele persegue essa idéia nos filmes subseqüentes. Mas se você ler a análise da obra e do criador, entenderá que terrível é ser gênio. Recomendo, afinal, não se pode viver só de Vin Diesel.

Abbas Kiarostami, iraniano, sempre escondido atrás de óculos escuros. Engraçado: Cimino, bonito como Kiarostami, também gostava de óculos escuros. Raul Seixas cantava que “quem não tem colírio usa óculos escuros” - deve ter a ver.
O cinema iraniano (a arte, veja bem) costuma ser muito, muito humano. Para entender, veja o que disse Kiarostami sobre seus filmes, em 1995, numa publicação feita em Paris: “Creio num cinema que dá mais possibilidades e mais tempo a seu espectador. Um cinema semifabricado, um cinema inacabado que se completa pelo espírito criativo do público. Enquanto cineasta, eu conto com essa intervenção criativa, caso contrário, filme e espectador desaparecerão juntos”.  Já em 2004, quando do lançamento de seu filme “Dez”, sobre uma taxista (no Irã!) afirmou numa entrevista ,: “As autoridades (iranianas, que baniram seus filmes do País) não têm problemas comigo ou com meus filmes. Elas têm problemas com o público de meus filmes. Isso é porque esse público representa uma força. É por isso que ele é visto como um problema”.

Já o Babenco, que sujeito simples!
Assisti na madrugada de domingo para hoje, dois terços da entrevista que ele concedeu ao Programa Livre, da Band, depois do lançamento de “Meu Amigo Hindu”. Pra começar, usava um paletó listrado, aparentemente de brim, ou outro tecido aparentado, camisa riscadinha de azul, tudo sobre bermuda e tênis. Aquela careca lustrosa não possibilitava assumir aparência “casual”; estranha, soa melhor.
Foi nessa entrevista que o ouvi dizer que era “brasileiro nascido na Argentina”. Não encontrei nenhuma notícia no “pai dos desinformados” que valesse a pena – publicaram fofocas retiradas de revistas ... de fofocas. Entre seus filmes mais famosos contam-se “Pixote, a lei do mais forte”, “O Beijo da Mulher Aranha”, indicado ao Oscar de melhor filme e”Carandiru”. Mais recentemente, “Meu Amigo Hindu”, lançado em 2015, e baseado em sua experiência pessoal com um câncer linfático.

Falo desses homens, hoje, porque não esqueci minhas classes nas Escolas Técnicas da Fundação Paula Souza. Sempre que vejo pessoas notáveis, que pautam suas vidas por um trabalho apaixonado, preciso passar para os “alunos”, quaisquer olhos ou ouvidos interessados em experiências que deram certo.


Você dirá, talvez; “E o Cimino?” Eu lhe digo que ele também deu certo, o que não deu certo foi a bilheteria!

segunda-feira, 11 de julho de 2016

BRASIL, A ILUSTRE CASA DE RAMIRES

  Eça de Queiroz ressentia-se de que Portugal tivesse perdido toda a expressão política e econômica que conquistara no período em que dominara os mares conhecidos. Para ele. a derrocada econômica e política portuguesa conduzira o país à perda da noção do próprio valor, da própria importância.

  Ele expressava esse sentimento em sua obra – Os Maias, A Cidade e a Serra e outros -, mas dedicou uma expressamente ao tema: A Ilustre Casa de Ramires.   Nela,o autor descreve a vida medíocre  e infeliz de um nobre arruinado, descrente de si e acovardado pelo próprio medo, nele inato.
  Em razão dessa descrença em si próprio, ele se humilha e avilta junto a um amigo, na tentativa de se eleger para um cargo político, que o resgataria da mediocridade e descrédito em que se via mergulhado
  Então, enquanto aguarda a eleição, um incidente mesquinho em suas terras faz que tome uma atitude, ditada pelo medo aterrorizante que sente, mas que aos moradores do local pareceu um ato de coragem e honradez

  Surpreso, a partir dali passou a ser cortejado pelas pessoas de sua aldeia e seus domínios. Deu-se conta de que, na realidade, sempre fora respeitado, antes mesmo do incidente revelador – era ele quem se diminuía e pelo medo paralisante tornava evidente, aos mais argutos, sua fraqueza interior; enfim, jamais precisara se aviltar perante quem quer que fosse para granjear uma posição, para ter o respeito que o povo já lhe devotava.

  Eça termina a história traçando um paralelo entre o ilustre Ramires e Portugal, detentor, no passado, de tanta glória, dono dos mares e dos mapas que os decifravam, seguido de perto por Espanha e perseguido através dos oceanos por Holanda, que lhe copiava estratégias e lhe roubava tesouros, e que da mesma forma como conquistou o sucesso, viu-se dele apeado, e posto à margem da elite dos países considerados grandes, e se amesquinhou, e empobreceu e era agora a sombra do que fora.

  Essa história me fez pensar, não no Brasil, mas no povo brasileiro, esse povo que mesmo sem condições mínimas de dignidade, se ergue do pó em que vive, e batalha e conquista seu espaço.

  É o trabalhador do campo, que com u’a meia foice corta cana na zona da mata nordestina, e despenca das “cabiceras” para o sul, onde enfrenta o suor e o tijolo na construção civil, ou seu vizinho que parte para a indústria e, esquecido do serviço embrutecedor que exercia, aprende o trabalho minucioso dentro da indústria, e constrói seu barraco sobre palafitas, depois a casa de blocos, e na terceira geração envia seu filho para a Faculdade de Medicina (como pude testemunhar);

  É o artista que batalha dia e noite, expondo-se a tantas circunstâncias que a nós pareceriam degradantes, para mostrar seu trabalho, sua obra;

  É o esportista que enfrenta todas as adversidades porque crê no próprio talento, e tem que escolher entre pagar a condução que o leva ao treino no clube e o lanche que lhe matará a fome.
  Quando vemos um Romário erguendo a cabeça e se dizendo “o cara”, nós o reputamos "mascarado", e não o detentor do direito de se chamar "o cara".
   Porque, amigos, quando pegávamos nossos livros e íamos para a Faculdade, o Romário curtia fome para poder treinar e buscar seu lugar no futebol brasileiro; e sabe o que ele fez, além de ganhar dinheiro e aparecer em manchetes nos jornais? Ele levou o nome do Brasil para a Europa, onde exibiu como brasileiro esse talento esmerilhado durante a fome.
  Como ele, perdemos a conta de quantos outros brasileiros (você deve conhecer algum que eu desconheço) lutaram, suaram e hoje brilham. 
  Você, você mesmo sabe o quanto vale.

  Apesar da zombaria da mídia estrangeira, e mais, da zombaria dos nossos políticos sobre nós, eu sei e você sabe que valemos muito mais do que essa lama que já sobe aos nossos ombros; nós e nossas vidas  somos testemunhas de que isso não nos representa, não nos suja, isso não é e não vale o que nós somos! E junto com nossos iguais podemos refazer esta nação, que não será conhecida pelo “povinho” que Deus nela colocou (como na piada), porque esse POVO é especial, é bonito, talentoso, é, sim trabalhador, é capaz e competente bastante para mudar essa história!”
    
  Aí está o Aécio Neves, sendo enredado nas malhas de denúncias.
 Mas o avô dele, não me interessa o que tenha feito, disse uma frase que precisamos considerar e adotar como nossa, neste momento de tantas declarações indignadas nas redes sociais: NÃO VAMOS NOS DISPERSAR.

  Tão importante quanto isso, entretanto, é tomarmos consciência de nosso valor individual, e de quanto ele crescerá se somado ao valor individual de cada um de nossos amigos e companheiros. Ao invés de nos dispersarmos, vamos nos aproximar, e vamos nos ajudar para fazer valer o que somos. E nós somos um povo! 

  Coincidentemente vi ontem, quando vazio o estádio onde Portugal lutou contra a França, colada ao alambrado a faixa vermelha e verde onde se lia: NAÇÃO VALENTE E IMORTAL.
  Quem incentivou essa nação valente e imortal a perseguir e conquistar a vitória, no estádio, foi um herói ferido, que não precisa daqueles colegas nem daquele time, porque já foi considerado e premiado várias vezes como o melhor jogador do mundo, mas que amou aquele Portugal e amou aqueles companheiros, aos quais gritava, e entre xingamentos incentivava dizendo: Vai, tu treinaste, tu te preparaste, vai e faz, se der errado não faz mal, mas vai e chuta!


  Temos que ser o sal desta terra. Vamos nós também, lutar, por mais que a vitória nos pareça distante, e mesmo sem saber lutar, e sem sequer saber usar os instrumentos necessários, mas sendo nós mesmos, sendo íntegros, sendo singelamente íntegros, vamos lá, todos os dias, é a nossa vez!